5 de fevereiro

Pode algo quebrado valer mais que a peça inteira? Aparentemente não. Mas no Brasil já aconteceu isto, talvez pela primeira vez na história da humanidade. Vamos contar esse mistério.
Foi na década de 40 / 50 do século passado. Voltemos a esse tempo. A cidade de São Paulo era servida por duas indústrias cerâmicas principais. Um dos produtos dessas cerâmicas era um tipo de lajota cerâmica quadrada (algo como 20x20cm) composta por quatro quadrados iguais. Essas lajotas eram produzidas nas cores vermelha (a mais comum e mais barata), amarela e preta. Era usada para piso de residências de classe média ou comércio.

No processo industrial da época, sem maiores preocupações com qualidade, aconteciam muitas quebras e esse material quebrado sem interesse econômico era juntado e enterrado em grandes buracos.
Nessa época os chamados lotes operários na Grande São Paulo eram de 10x30m ou no mínimo 8 x 25m, ou seja, eram lotes com área para jardim e quintal, jardins e quintais revestidos até então com cimentado, com sua monótona cor cinza. Mas os operários não tinham dinheiro para comprar lajotas cerâmicas que eles mesmo produziam e com isso cimentar era a regra.
Certo dia, um dos empregados de uma das cerâmicas e que estava terminando sua casa não tinha dinheiro para comprar o cimento para cimentar todo o seu terreno e lembrou do refugo da fábrica, caminhões e caminhões por dia que levavam esse refugo para ser enterrado num terreno abandonado perto da fábrica. O empregado pediu que ele pudesse recolher parte do refugo e usar na pavimentação do terreno de sua nova casa. Claro que a cerâmica topou na hora e ainda deu o transporte de graça pois com o uso do refugo deixava de gastar dinheiro com a disposição.

Agora a história começa a mudar por uma coisa linda que se chama arte. A maior parte do refugo recebida pelo empregado era de cacos cerâmicos vermelhos mas havia cacos amarelos e pretos também. O operário ao assentar os cacos cerâmicos fez inserir aqui e ali cacos pretos e amarelos quebrando a monotonia do vermelho contínuo. É, a entrada da casa do simples operário ficou bonitinha e gerou comentários dos vizinhos também trabalhadores da fábrica. Ai o assunto pegou fogo e todos começaram a pedir caquinhos o que a cerâmica adorou pois parte, pequena é verdade, do seu refugo começou a ter uso e sua disposição ser menos onerosa.

Mas o belo é contagiante e a solução começou a virar moda em geral e até jornais noticiavam a nova mania paulistana. A classe média adotou a solução do caquinho cerâmico vermelho com inclusões pretas e amarelas. Como a procura começou a crescer a diretoria comercial de uma das cerâmicas descobriu ali uma fonte de renda e passou a vender, a preços módicos é claro pois refugo é refugo, os cacos cerâmicos. O preço do metro quadrado do caquinho cerâmico era da ordem de 30% do caco integro (caco de boa família).

Até aqui esta historieta é racional e lógica pois refugo é refugo e material principal é material principal. Mas não contaram isso para os paulistanos e a onda do caquinho cerâmico cresceu e cresceu e cresceu e , acreditem quem quiser, começou a faltar caquinho cerâmico que começou a ser tão valioso como a peça integra e impoluta. Ah o mercado com suas leis ilógicas mas implacáveis.

Aconteceu o inacreditável. Na falta de caco as peças inteiras começaram a ser quebradas pela própria cerâmica. E é claro que os caquinhos subiram de preço ou seja o metro quadrado do refugo era mais caro que o metro quadrado da peça inteira… A desculpa para o irracional (!) era o custo industrial da operação de quebra, embora ninguém tenha descontado desse custo a perda industrial que gerara o problema ou melhor que gerara a febre do caquinho cerâmico.

De um produto economicamente negativo passou a um produto sem valor comercial a um produto com algum valor comercial até ao refugo valer mais que o produto original de boa família…

A história termina nos anos sessenta com o surgimento dos prédios em condomínio e a classe média que usava esse caquinho foi para esses prédios e a classe mais simples ou passou a ter lotes menores (4 x15m) ou foram morar em favelas.

São histórias da vida que precisam ser contadas para no mínimo se dizer:
— A arte cria o belo, e o marketing tenta explicar o mistério da peça quebrada valer mais que a peça inteira…


Largado por Máximo Ternura | largados comentaram ( 10 ) | Visualizações: 1587


10 respostas para “PISO DE CAQUINHOS”

  1. Zoto disse:

    Parabéns MT pela matéria.
    Foi assim mesmo, chegava-se a comprar a peça inteira e quebra-la na obra para compor o lindo mosaico paulistano. Na minha casa havia um longo corredor de caquinhos que, enquanto era lavado com água e sabão, garantia a diversão para eu e meus colegas para desespero da empregada que não conseguia terminar o serviço. Escorregávamos deitados de “peixinho” no piso escorregadio.
    Antes da cerâmica adotava-se o “cimento queimado”, por vezes colorido com “pó xadrez” nas cores vermelho, batizada de vermelhão e posteriormente verde.
    Muito bom recordar essa época. Em”cemitério de azulejos” aqui em SP, ainda é possível encontrar essas cerâmicas, se estiver disposto a pagar mais que porcelanato, agora mais caro pela baixa oferta e não por alta demanda… O mercado se ajusta sempre.

  2. Junior disse:

    Otima reportagem.

    Sem experiencia nenhuma eu fiz isso no meu quintal, tenho varias cachorras e por causa da urina o concreto ficava cheirando.

    Comprei alguns pisos barato e sem experiencia fui quebrando e fazendo aos poucos e ficou muito bom.

  3. gersao disse:

    Nao eh propaganda, mas vale informar que em SP Capital Rua Silva
    Bueno tem uma loja chamada cemiterio dos azulejos. La encontra se
    todo tipo de azulejo antigo…Na casa de minha mae temos um corredor todo de caquinhos, mas eh porque o azulejo era de segunda e quebrava muito. Valeu MT pela pesquisa.

  4. Piteco disse:

    Hum-iteressante,então-era-voce-que-andava-com-caquinho-para-cortar-o-pau-dos-outros.
    Danada-desde-criacinha.

  5. zag disse:

    Show de bola!!! Gostei mesmo da matéria!

  6. Piteco disse:

    Mais-confesso-que-não-era-eu-o-do-caquinho.Era-o-Zoto,ou,o-M.T

  7. fabiano disse:

    da hora. bom pra explicar preço da procura

  8. oigres disse:

    Boa matéria, mas a vanguarda neste tipo de uso para lajotas e azulejos quebrados, foi Antoni Gaudí, famoso arquiteto espanhol que lá pelos idos de 1880/90, fez várias e conhecidíssimas obras usando este tipo de acabamento – La Pedreira, Casa Batló, Parque Güell,todas em Barcelona, entre outras.Mais recentemente, Antonio Calatrava, outro arquiteto e engenheiro espanhol, usou este mesmo acabamento em uma obra em Valência (Espanha), no Palácio das Artes e das Ciências.

  9. Máximo Ternura disse:

    Muito obrigado à todos que gostaram e agradeceram por este post.

  10. Christiano Kiefer disse:

    Interessante matéria continue enviando coisas do gênero largado também é cultura

Deixe um comentário

*