Quando eu estava no jornal EXTRA, lá pelos idos de 1999, estourou a macabra história do Anjo da Morte, o enfermeiro Edson Izidoro Guimarães, que “apressava” a morte de pacientes no Hospital Municipal Salgado Filho para ajudar agentes funerários e também possíveis traficantes de órgãos (minha memória não permite saber se essa história se confirmou) – uma pessoa doente mas com um fígado em bom estado tinha a morte acelerada por obra do insano enfermeiro. Cobri por algumas semanas, pois quem chegava de manhã tinha que começar a correr atrás das suítes. Passei dias no Salgado Filho, às vezes sem render nenhuma matéria relevante, vez ou outra conseguindo falar com algum parente de vítima.
A história, terrível, me causou um trauma que me levou, um ano depois, a pedir para colocar na minha carteira de identidade a anotação “não doador de órgãos”.
Várias pessoas na época assim fizeram – o governo passou a permitir que as pessoas optassem no RG para o caso de faleceram em via pública e não terem parentes por perto. Como eu havia perdido minha primeira via da identidade e precisei fazer outra, resolvi fazer isso, com o temor de que o caso do Anjo da Morte não fosse algo pontual e sim sistemático. Parecia crível que a máfia dos órgãos corrompesse enfermeiros. E mais crível ainda que os agentes funerários, gente com quem convivi no início da carreira (em 1994, quando comecei, era normal ficarmos com eles na porta do IML), forçassem essa barra.
Sempre me deu certa vergonha exibir a carteira com a inscrição. Tanto que em muitos lugares apresento a carteira da FENAJ (que vale como identidade em qualquer estado do Brasil). Mas os dias e os anos iriam me provar que o general George Smith Patton Junior, comandante de um exército americano na Segunda Guerra, estava certo: “Não se aconselhem com seus receios”.
Na semana que antecedeu este Dia dos Mortos, o mundo real me esbofeteou por eu ter feito essa carteira de identidade. E explico por quê. Tem a ver com um casal do Espírito Santo.
Rosi era casada com Sérgio há três décadas. Escrevo “décadas” porque realmente não sei o tempo de casamento e esta, creiam-me, não é uma boa hora para perguntar. O casal comemorava a gravidez de uma das filhas, uma netinha estava para chegar, mas infelizmente, pelo menos no mundo do lado de cá, um deles não chegaria a conhece-la.
Há coisa de dois ou três meses, Rosi teve um AVC, foi socorrida rapidamente, mas ainda ficou com algumas sequelas. No dia do AVC, ela demonstrou confusão mental, e Sérgio, extremamente perspicaz, socorreu imediatamente, levando-a a um hospital. Liberada alguns dias depois, a vida seguiu normal até o dia 28 de outubro, dia da eleição no segundo turno.
Sérgio havia me dito, em um grupo do qual faço parte, em quem ele votaria. Mas acabou não votando. O que me espanta é como o voto fica, nesta história, reduzido a uma dimensão tão real: uma gota em um oceano, algo sem a mínima importância.
Por favor: não estou desdenhando da democracia. Só estou dizendo, com efeito, que saber qual o voto de Sérgio, que acabou não acontecendo, não tem a menor importância. Rosi, no dia da eleição, teve outro AVC. Sérgio a levou de novo ao hospital, mas lá os médicos disseram aquela frase que nos mergulha no abismo: “Não há mais o que fazer”.
Rosi estava em coma, sedada, e só restava esperar.
No dia seguinte, alguém no grupo (sim, de WhatsApp) pergunta por Rosi.
– Rosi se foi. Estou sem chão.
É praticamente impossível dizer alguma coisa que atenue – mas não dizer nada é pior. Mandamos nossas mensagens. Pensamos na tristeza da família, na dor, no desalento de não poder ir ao velório para amparar nosso “irmão” que conhecemos há 15 anos, todo dia falando no mesmo grupo (primeiro de e-mail, depois de whatsapp).
Mas o sepultamento só aconteceria dois dias depois.
Sim: Sérgio e sua família mantiveram Rosi sem sepultamento porque era da vontade de todos eles que os órgãos fossem doados. A família, em meio à dor, se manteve firme esperando, até que todos os trâmites burocráticos fossem feitos.
Os rins de Rosi salvaram a vida de duas pessoas no Espírito Santo. As córneas vão trazer a luz a alguém em São Paulo. O coração de Rosi bate neste momento dentro do peito de um carioca, carioca tal e qual seu marido. O fígado ainda seria analisado, mas possivelmente já salvou a vida de alguém neste Dia dos Mortos.
Sérgio estava em prantos quando fez este relato, mas é possível que neste momento, neste mundo em que a única luta é entre trevas e luz, ele tenha sido iluminado. Não sei a religião dele, mas a tônica do Cristo é basicamente ajudar o próximo, ajudar quem está perto, ajudar o desconhecido. Rosi salvou pelo menos quatro desconhecidos e a um quinto deu a visão.
O que faz uma família desejar com tanta força salvar o próximo, ajudar um completo desconhecido, é um grande mistério de Fé para mim, algo que me faz olhar com vergonha absoluta para a minha ridícula carteira de identidade, construída pelo medo, esse sentimento que parece um pouco primo do egoísmo e filho da falta de fé. O que faz uma família prolongar o sofrimento, aumentar a espera por um sepultamento, pela obstinação em ajudar o próximo é um mistério absoluto – mas um mistério necessário, uma fé da qual precisamos, todos.
O que é encantador numa história tão triste: princípios, nunca propósitos. Claro, há o propósito de ajudar o estranho – mas este nasce do princípio de que se exerce o amor ao próximo e a solidariedade de forma incondicional. Os princípios são inegociáveis, imutáveis – os propósitos sim, é que mudam ao longo da vida, à medida que se conhece o mundo real, o mundo tangível, onde o que se vê não são sombras na caverna, mas pessoas com história e sofrimentos. E quando encontramos pessoas com princípios, é a vida nos avisando que tudo pode ser melhor, que estamos aqui por um motivo. Rosi teve duas filhas, formou uma bela família, já teria sua presença na Terra justificada. Mas ajudar e salvar o próximo, ter respeito, entender o que é importante, nada disso pode ser deixado de lado. E ela e Sérgio entenderam isso até o fim.
A história, no fim das contas, me lembrou a famosa entrevista da Madre Teresa de Calcutá, citada por Matheus de Castro em um brilhante artigo sobre o Natal – um repórter pergunta o que precisa melhorar no mundo, e Madre Teresa responde:
– Você e eu.
Sérgio e Rosi me disseram, com todo amor do mundo, que eu é que preciso melhorar. Agradeço, muito, pela revelação. Que Deus os acompanhe.
Sempre me deu certa vergonha exibir a carteira com a inscrição. Tanto que em muitos lugares apresento a carteira da FENAJ (que vale como identidade em qualquer estado do Brasil). Mas os dias e os anos iriam me provar que o general George Smith Patton Junior, comandante de um exército americano na Segunda Guerra, estava certo: “Não se aconselhem com seus receios”.
Na semana que antecedeu este Dia dos Mortos, o mundo real me esbofeteou por eu ter feito essa carteira de identidade. E explico por quê. Tem a ver com um casal do Espírito Santo.
Rosi era casada com Sérgio há três décadas. Escrevo “décadas” porque realmente não sei o tempo de casamento e esta, creiam-me, não é uma boa hora para perguntar. O casal comemorava a gravidez de uma das filhas, uma netinha estava para chegar, mas infelizmente, pelo menos no mundo do lado de cá, um deles não chegaria a conhece-la.
Há coisa de dois ou três meses, Rosi teve um AVC, foi socorrida rapidamente, mas ainda ficou com algumas sequelas. No dia do AVC, ela demonstrou confusão mental, e Sérgio, extremamente perspicaz, socorreu imediatamente, levando-a a um hospital. Liberada alguns dias depois, a vida seguiu normal até o dia 28 de outubro, dia da eleição no segundo turno.
Sérgio havia me dito, em um grupo do qual faço parte, em quem ele votaria. Mas acabou não votando. O que me espanta é como o voto fica, nesta história, reduzido a uma dimensão tão real: uma gota em um oceano, algo sem a mínima importância.
Por favor: não estou desdenhando da democracia. Só estou dizendo, com efeito, que saber qual o voto de Sérgio, que acabou não acontecendo, não tem a menor importância. Rosi, no dia da eleição, teve outro AVC. Sérgio a levou de novo ao hospital, mas lá os médicos disseram aquela frase que nos mergulha no abismo: “Não há mais o que fazer”.
Rosi estava em coma, sedada, e só restava esperar.
No dia seguinte, alguém no grupo (sim, de WhatsApp) pergunta por Rosi.
– Rosi se foi. Estou sem chão.
É praticamente impossível dizer alguma coisa que atenue – mas não dizer nada é pior. Mandamos nossas mensagens. Pensamos na tristeza da família, na dor, no desalento de não poder ir ao velório para amparar nosso “irmão” que conhecemos há 15 anos, todo dia falando no mesmo grupo (primeiro de e-mail, depois de whatsapp).
Mas o sepultamento só aconteceria dois dias depois.
Sim: Sérgio e sua família mantiveram Rosi sem sepultamento porque era da vontade de todos eles que os órgãos fossem doados. A família, em meio à dor, se manteve firme esperando, até que todos os trâmites burocráticos fossem feitos.
Os rins de Rosi salvaram a vida de duas pessoas no Espírito Santo. As córneas vão trazer a luz a alguém em São Paulo. O coração de Rosi bate neste momento dentro do peito de um carioca, carioca tal e qual seu marido. O fígado ainda seria analisado, mas possivelmente já salvou a vida de alguém neste Dia dos Mortos.
Sérgio estava em prantos quando fez este relato, mas é possível que neste momento, neste mundo em que a única luta é entre trevas e luz, ele tenha sido iluminado. Não sei a religião dele, mas a tônica do Cristo é basicamente ajudar o próximo, ajudar quem está perto, ajudar o desconhecido. Rosi salvou pelo menos quatro desconhecidos e a um quinto deu a visão.
O que faz uma família desejar com tanta força salvar o próximo, ajudar um completo desconhecido, é um grande mistério de Fé para mim, algo que me faz olhar com vergonha absoluta para a minha ridícula carteira de identidade, construída pelo medo, esse sentimento que parece um pouco primo do egoísmo e filho da falta de fé. O que faz uma família prolongar o sofrimento, aumentar a espera por um sepultamento, pela obstinação em ajudar o próximo é um mistério absoluto – mas um mistério necessário, uma fé da qual precisamos, todos.
O que é encantador numa história tão triste: princípios, nunca propósitos. Claro, há o propósito de ajudar o estranho – mas este nasce do princípio de que se exerce o amor ao próximo e a solidariedade de forma incondicional. Os princípios são inegociáveis, imutáveis – os propósitos sim, é que mudam ao longo da vida, à medida que se conhece o mundo real, o mundo tangível, onde o que se vê não são sombras na caverna, mas pessoas com história e sofrimentos. E quando encontramos pessoas com princípios, é a vida nos avisando que tudo pode ser melhor, que estamos aqui por um motivo. Rosi teve duas filhas, formou uma bela família, já teria sua presença na Terra justificada. Mas ajudar e salvar o próximo, ter respeito, entender o que é importante, nada disso pode ser deixado de lado. E ela e Sérgio entenderam isso até o fim.
A história, no fim das contas, me lembrou a famosa entrevista da Madre Teresa de Calcutá, citada por Matheus de Castro em um brilhante artigo sobre o Natal – um repórter pergunta o que precisa melhorar no mundo, e Madre Teresa responde:
– Você e eu.
Sérgio e Rosi me disseram, com todo amor do mundo, que eu é que preciso melhorar. Agradeço, muito, pela revelação. Que Deus os acompanhe.
Largado por Zoto | largados comentaram ( 2 ) | Visualizações: 1534
novembro 4th, 2018 at 8:46
Agora saiu na internet que em um hospital no exterior uma mulher fazia o mesmo trabalho que o enfermeiro Edson fazia , não li, mais vi a manchete.
novembro 4th, 2018 at 21:07
no início eu também fiquei com um pé a trás com esse papo de ser doador de órgãos, com tantas histórias de vendas ilegais sobre o assunto. mas agora, conhecendo o profissionalismo destas equipes eu confio no trabalho deles… errr… vale lembrar que na China a coisa é diferente. Dizem que até nas execuções já tem alguma negociação!